O Diário do Beagle de Darwin (1831-1836)
(FRAGMENTOS)
Tradução do original: Bernardo Esteves
Este texto faz parte do livro que será lançado em 2009 pelo Professor Ildeu de Castro Moreira da UFRJ
Informações completas no site da Casa da Ciência UFRJ
4 de abril
Como os ventos estão muito fracos, não passamos pelo Pão de Açúcar até a hora do almoço. Nosso lento cruzeiro foi animado pela perspectiva variável das montanhas: ora encobertos pelas nuvens brancas, ora iluminados pelo sol, os picos selvagens e rochosos configuravam novas paisagens. No interior da enseada a luz não estava boa, mas a visão desta noite preparou nossas mentes para o deleite do dia seguinte.
5 de abril
Pela manhã desembarquei com Earl nos degraus do palácio. Em seguida, vagamos pelas ruas, admirando sua aparência alegre e populosa. O plano da cidade é muito regular. As linhas, como em Edimburgo, seguem paralelas, atravessadas por outras em ângulos retos. As ruas principais que levam às praças são retas e largas. As cores alegres das casas enfeitadas pelas varandas, as numerosas igrejas e conventos e a multidão apressada ao longo das ruas conferem à cidade uma aparência indicativa de sua posição como capital comercial da América do Sul.
6 de abril
Qualquer naturalista é capaz de lamber a sola do sapato de um brasileiro diante da perspectiva de ver florestas selvagens povoadas por belos pássaros, macacos e preguiças e lagos com capivaras e jacarés.
8 de abril
Às nove horas, juntei-me ao grupo na Praia Grande, vilarejo do lado oposto da enseada. Éramos seis: o sr. Patrick Lennon, um irlandês disciplinado que fez uma grande fortuna quando o Brasil se abriu para os ingleses vendendo espetáculos, termômetros etc. (…)
O dia estava poderosamente quente e tudo estava quieto quando passamos pela mata, com exceção das borboletas grandes e brilhantes que batiam asas com indolência. A vista que tivemos ao cruzar as montanhas por trás de Praia Grande foi muito sublime e pitoresca. As cores eram intensas e o matiz predominante era um azul escuro, com o céu e as águas calmas da baía rivalizando em esplendor. Após passar por uma região cultivada, adentramos uma floresta cuja grandeza não podia ser superada. (…)
Chegamos por volta do meio-dia a Itaocaia, pequeno vilarejo situado em uma planície. Em torno das casas centrais, estão as cabanas dos negros, cuja forma e posição regulares me lembraram os desenhos das moradas dos hotentotes do sul da África. (…) Este lugar é famoso no país por ter sido durante um longo período a morada de alguns escravos fugidos que, cultivando uma pequena gleba de terra próxima ao topo, conseguiram tirar dali seu sustento. Por fim, alguns soldados foram enviados e os prenderam todos, com exceção de uma velha que, a ser capturada de novo, preferiu se espatifar em pedaços e jogou-se bem do topo da montanha. Fosse ela uma matrona romana e isso seria chamado de patriotismo nobre; como se trata de uma negra, foi chamado de obstinação brutal!
9 de abril
A estrada passava por uma planície estreita e arenosa situada entre o mar e as lagoas salgadas no interior. O número de belos pássaros pescadores como garças e grous e as plantas suculentas com as mais fantásticas formas davam à paisagem um interesse que ela não teria em outras circunstâncias. As poucas árvores mirradas eram oprimidas por plantas parasitas, entre as quais as mais admiráveis eram a beleza e a fragrância deliciosa de algumas orquídeas.(…)
Almoçamos em Mandetiba. O termômetro marcava 84º [29ºC] na sombra. A bela paisagem nos revigorou muito. As montanhas com florestas eram vistas ao longe e refletidas na água perfeitamente imóvel de uma grande lagoa. Como a venda era muito boa e como tive a agradável e rara lembrança de uma excelente refeição, serei agradecido e a descreverei como um exemplo típico.(…)
Ao sair de Mandetiba, passamos por outra região deserta repleta de lagos. Em alguns deles havia conchas de água doce e, em outros, de salgada. Enfim adentramos a floresta. As árvores eram muito altas e o que havia de notável nelas era a brancura de seus troncos, o que as tornava muito impressionantes à distância. Vejo em meu caderno: “maravilhosos parasitas florescentes”. Isto é invariavelmente o que mais chama minha atenção; trata-se do mais inusitado objeto em uma floresta tropical.(…) Eles dão à planície a aparência exata dos vulcões de lama em Jorullo, conforme os descreveu Humboldt. Chegamos a Ingetado2 quando já estava escuro, após dez horas no lombo dos cavalos.
10 de abril
Partimos animados antes que clareasse, mas as 15 milhas [24 km] de areia pesada antes de tomarmos o café da manhã em Aldeia de São Pedro praticamente destruíram os bons modos do nosso grupo. Após outra longa cavalgada chegamos ao local em que dormiríamos, Campos Novos. Foi uma noite muito fresca e agradável. O termômetro na grama marcava 74º [23ºC]. Saí para coleta e encontrei algumas conchas de água doce.
11 de abril
Em Campos Novos, comemos suntuosamente com arroz, frango, biscoito, vinho e aguardente no almoço, café à noite e café com peixe para o desjejum. Tudo isso e mais uma boa comida para os cavalos custou apenas 2s. 6d. por pessoa. Passamos por várias aglomerações de mata densa. Senti-me indisposto, com um pouco de calafrios e enjôo. Cruzei a barra de São João de canoa, ao lado de nossos cavalos. Não pude comer nada até uma hora — esse foi o primeiro momento em que pude conseguir algo. Viajamos até escurecer. Senti-me desgraçadamente fraco e exausto: mais de uma vez pensei que cairia do cavalo. Dormimos na Venda do Mato, duas milhas [3,2 km] ao sul da foz do rio Macaé. Senti-me indisposto a noite toda. Não foi preciso muita imaginação para figurar os horrores de adoecer em um país estrangeiro, incapaz de pronunciar uma só palavra e de obter ajuda médica.
12 de abril
Na manhã seguinte, fiquei praticamente curado comendo canela e bebendo vinho do porto. Felizmente, à noite cheguei a Sossego, a casa do sr. Figueiredo, o velho sogro do sr. Lawrie.
13 de abril
Felizmente, à noite cheguei a Sossego, a casa do sr. Figueiredo, o velho sogro do sr. Lawrie.(…) Neste caso, a fazenda consiste em uma área de terreno aberto destacado da floresta quase infinita. Ali são cultivados os vários produtos da terra. O café é o mais lucrativo: o irmão de nosso anfitrião tem 100 mil pés e produz em média 2 libras [746 g ] por pé, embora muitos deles cheguem a 8 libras [3 kg] ou até mais. A mandioca também é cultivada em grande quantidade. Todas as partes da planta são aproveitadas. As folhas e o caule são comidas pelos cavalos. As raízes, assentadas até a polpa, são espremidas a seco e depois cozidas para fazer a farinha, que é de longe o artigo mais importante de subsistência no Brasil — dela se prepara a tapioca do comércio.(…) Uma manhã saí para caminhar uma hora antes do nascer do sol para admirar o silêncio solene da paisagem. Afinal, o silêncio foi quebrado pelo hino da manhã, entoado bem alto por todos os negros — seu dia de trabalho geralmente começava dessa forma.
14 de abril
Partimos ao meio-dia para a propriedade do sr. Lennon. A estrada passava por uma vasta extensão de floresta. Na estrada, vimos muitos pássaros bonitos, tucanos e abelheiros. Dormimos em uma fazenda a uma légua [5,5 km] do fim de nossa viagem. O agente nos recebeu com hospitalidade e foi o único brasileiro que vi com boa expressão. Os escravos aqui pareciam desgraçadamente extenuados e mal vestidos. Eles trabalhavam até bem depois de escurecer. O método comum de manter os escravos é, como na fazenda do sr. Figueiredo, dar-lhes dois dias, sábado e domingo — o que eles produzem nesses dias é o suficiente para sustentar a eles e a suas famílias durante toda a semana.
15 de abril
A mata nestas imediações tem várias formas de vegetação que eu ainda não havia visto. Algumas espécies muito elegantes de samambaias. Uma grama como o papiro. E o bambu, cujos colmos tinham 12 polegadas [30 cm] de circunferência. Fiquei bastante desapontado e mal posso acreditar que se tratava de bons espécimes.(…) Durante a briga do sr. Lennon com seu agente, ele ameaçou vender em um leilão público uma criança mulata ilegítima a quem o sr. Cowper é muito apegado. Além disso, ele quase pôs em prática a ideia de tirar todas as mulheres e crianças de seus maridos e vendê-los separadamente no mercado no Rio. Será possível imaginar dois exemplos mais horríveis e escandalosos? (…) Diante de fatos como este, como são fracos os argumentos daqueles que defendem que a escravidão é um mal tolerável!
16 de abril
Partimos cedo de manhã em direção ao sr. Manuel em Sossego. Conforme se convencionou, ele seria o árbitro da disputa. Mais uma vez, desfrutei do infalível deleite de cavalgar pela floresta.
17 e 18 de abril
Estes dois dias foram passados em Sossego, e esta foi a parte mais proveitosa de toda a expedição. A maior parte deles foi passada na mata, onde consegui coletar muitos insetos e répteis.
A mata é tão densa e fechada que achei impossível andar fora da trilha. A maior parte das árvores, apesar da grande altura, não tem mais de 3 ou 4 pés [0,9 ou 1,2 m] de circunferência. Elas são entremeadas com outras de tamanho bem maior. O sr. Manuel estava fazendo uma canoa de 70 pés [21 m], e no chão sobravam 40 pés [12 m], o que significa que havia na origem 110 pés [33,5 m] de um tronco bem sólido. (…) As florestas aqui são ornamentadas por uma das mais elegantes palmeiras, a juçara: com um tronco tão estreito que pode ser abraçado com as duas mãos, ela agita sua cabeceira de 30 a 50 pés [9 a 15 m] acima do solo. (…)
Muitas das árvores mais velhas apresentam um curiosíssimo espetáculo: elas são cobertas por tranças de cipós que muito lembram feixes de palha. Se o olhar se desviar do panorama da folhagem ao alto para o solo, será atraído pela extrema elegância das folhas de incontáveis espécies de samambaias e mimosas. Efeito de andar sobre mimosas. É fácil especificar objetos individuais de admiração, mas é praticamente impossível dar uma ideia adequada dos sentimentos mais altos que se despertam: deslumbramento, assombro e devoção sublime preenchem e elevam a mente.
19 de abril
Deixamos Sossego, cruzamos o rio Macaé e dormimos na Venda de Mato. À noite, caminhei pela praia e desfrutei da vista de uma arrebentação alta e violenta.
20 de abril
Retornamos pela velha estrada para Campos Novos. A cavalgada foi muito extenuante, passando por uma areia pesada e abrasante. Areia ruidosa. Enquanto atravessávamos o São João com nossos cavalos, tivemos algum perigo e dificuldade — os animais ficaram exaustos e havia dois mulatos bêbados no barco.
21 de abril
Partimos ao romper do dia e seguimos algumas léguas pela estrada antiga. Em seguida, desviamo-nos, determinados a chegar à cidade pelo caminho interior. Nosso grupo ficou reduzido ao sr. Lennon, seu filho e eu. Chegamos à noite ao rio Combrata, quase sem ter descansado nossos cavalos. Essa região era bem mais cultivada. A venda era acima de tudo miserável, e fomos obrigados a dormir no milho.
22 de abril
Como de praxe, partimos algum tempo antes de clarear e tomamos o rumo de Madre de Deus, onde tomamos café da manhã. Não fosse pelas rajadas de chuva, a cavalgada teria sido muito interessante. A região é ricamente cultivada, tendo a cana-de-açúcar como produto principal. A mata contém muitos pássaros bonitos. As sebes eram decoradas com várias espécies de passifloras. O vilarejo de Madre de Deus, como todos os outros, é extremamente exótico e pitoresco. As casas são baixas e pintadas com cores alegres; o topo das portas e janelas é arqueado e tira o efeito tranqüilo tão universal nas cidades inglesas. Uma ou duas belas igrejas no centro do vilarejo completam a paisagem.
Continuou a chover e partimos para o lugar onde dormiríamos, Freguesia de Itaboraí. (…) Encontramos muitas pessoas a cavalo. O único veículo é uma carroça muito grosseira com rodas quase sólidas, puxada por oito bois jungidos: à medida que se move, ela faz um barulho extraordinário. (…)
23 de abril
Avistamos casas bonitas e alegres quando nos aproximamos da cidade. Durante o dia, passamos por uma floresta de acácias cuja folhagem formava um delicado véu contra o céu. e projetava sobre o chão um agradável tipo de sombras. Devido à delicadeza das folhas, nenhum farfalhar se ouvia quando a brisa as movimentava. Chegamos à noite a Praia Grande, onde, por ter perdido nossos documentos, passamos pela tormenta de ter que provar que nossos cavalos não eram roubados.